Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos Ai o meu pobre filho, que rico que é ai o meu rico filho, que pobre que é Nascidos do mesmo ventre Um vive de joelhos pró outro passar à frente E esta velha mãe para aqui já no sol poente Um dia há muito tempo, vi-os partir levando cada um do outro o porvir Seguiram pela estrada fora Um voltou-se para trás, disse adeus que me vou embora Voltaremos trazendo connosco a vitória De que vitória falas, disse eu então Da que faz um escravo do teu irmão? Ou duma outra que rebenta como um rio de fúria no peito feito tormenta quando não há nada a perder no que se tenta? Passaram muitos anos sem mais saber nem por onde passavam, nem se por ter criado os dois no mesmo chão eram ainda irmãos, partilhavam ainda o pão E o silêncio enchia de morte o meu coração Depois vieram novas que o que vivia da miséria do outro, se enriquecia Não foi para isto que andei dias que foram longos e noites que não contei a lutar pra ter a justiça como lei Às vezes rogo pragas de os ver assim Sinto assim uma faca dentro de mim Sei que estou velha e doente Mas para ver o mundo girar de modo diferente Ainda sei gritar, e arreganhar o dente Estou quase a ir embora, mas deixo aqui duas palavras pra um filho que perdi Não quero dar-te conselhos Mas se é teu próprio irmão que te faz viver de joelhos Doa a quem doer, faz o que tens a fazer Sérgio Godinho, in "os sobreviventes", 1971