GRITO De ti que inventaste a paz a ternura e a paixão o beijo o beijo fundo intenso e louco e deixaste lá para trás a côncava do medo à hora entre cão e lobo à hora entre lobo e cão. De ti que em cada ano cada dia cada mês não paraste de acender uma e outra vez a flor eléctrica do mais desvairado coração. De ti que fugiste à estepe e obrigaste à ordem dos caminhos o pastor a cabra e o boi e do fundo do tempo me chamaste teu irmão. De ti que ergueste a casa sobre estacas e pariste deuses e linguagens guerras e paisagens sem alento. De ti que domaste o cavalo e os neutrões e conquistaste o lírico tropel das águas e do vento. De ti que traçaste a régua e esquadro uma abóboda inquieta semeada de nuvens e tritões santidades e tormentos. De ti que levaste a volupta da ambição a trepar erecta contra as leis do firmamento. De ti que deixaste um dia que o teu corpo se cansassse desta terra de amargura e alegria e se espalhasse aos quatro cantos diluido lentamente no mais plácido silente e negro breu. De ti meu irmão ainda ouço o grito que deixaste encerrado em cada pétala do céu cada pedra cada flor. O grito de revolta que largaste à solta e que ficou para sempre em cada grão de areia a ressoar como um pálido rumor. O grito que não cansa de implorar por amor e mais amor e mais amor. José Fanha, in "Breve tratado das coisas da arte e do amor"