********************************************************** Olá a todos Como tinha sido anunciado, aqui está a edição especial dos VdS que celebra os seus cinco anos de vida. Esta é uma breve amostra dos poemas publicados nestes cinco anos e constitui, por assim dizer, uma espécie de lista dos mais queridos por mim. Convém também acrescentar uma palavra aos membros da pt-net que vao receber esta longa mensagem de uma forma inesperada. Quis o acaso (que dá pelo nome de A. Gomes) que eu re-entrasse na pt-net exactamente no mês em que se celebram os cinco anos dos VdS. Quis também o acaso que tivesse sido na pt-net que publiquei o primeiro do que viria a transformar-se numa longa lista de poemas publicados com regularidade todas as segundas-feiras. Parece-me pois adequado aproveitar os dois acasos para distribuir esta edicao de celebração também aos leitores da pt-net. A lista de poemas que se segue abre exactamente com o primeiro dos poemas dos VdS --- Canção Grata, da Florbela Espanca. Espero que os leitores habituais não fiquem muito desapontados com a falta de material novo esta semana. Espero também que os leitores da pt-net não levem a mal esta intromissão volumosa. Abraços Carlos ********************************************************** Canção grata Por tudo o que me deste inquietação cuidado um pouco de ternura é certo mas tão pouca Noites de insónia Pelas ruas como louca Obrigada, obrigada Por aquela tão doce e tão breve ilusão Embora nunca mais Depois de que a vi desfeita Eu volte a ser quem fui Sem ironia aceita A minha gratidão Que bem que me faz agora o mal que me fizeste Mais forte e mais serena E livre e descuidada Sem ironia amor obrigada Obrigada por tudo o que me deste Por aquela tão doce e tão breve ilusão Embora nunca mais Depois de que a vi desfeita Eu volte a ser quem fui Sem ironia aceita A minha gratidão Carlos Queiroz ------------------------------------------------------ Os versos que te fiz Deixa dizer-te os lindos versos raros Que a minha boca tem pra te dizer! São talhados em mármore de Paros Cinzelados por mim pra te oferecer. Têm dolência de veludos caros, São como sedas pálidas a arder... Deixa dizer-te os lindos versos raros Que foram feitos pra te endoidecer! Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda... Que a boca da mulher é sempre linda Se dentro guarda um verso que não diz! Amo-te tanto! E nunca te beijei... E nesse beijo, Amor, que eu te não dei Guardo os versos mais lindos que te fiz! Florbela Espanca ------------------------------------------------------ Se tu viesses ver-me... Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, A essa hora dos mágicos cansaços, Quando a noite de manso se avizinha, E me prendesses toda nos teus braços... Quando me lembra: esse sabor que tinha A tua boca... o eco dos teus passos... O teu riso de fonte... os teus abraços... Os teus beijos... a tua mão na minha... Se tu viesses quando, linda e louca, Traça as linhas dulcíssimas dum beijo E é de seda vermelha e canta e ri E é como um cravo ao sol a minha boca... Quando os olhos se me cerram de desejo... E os meus braços se estendem para ti... Florbela Espanca ------------------------------------------------------ Memória Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. Carlos Drummond de Andrade ------------------------------------------------------ Letra para um hino É possível falar sem um nó na garganta é possível amar sem que venham proibir é possível correr sem que seja fugir. Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta. É possível andar sem olhar para o chão é possível viver sem que seja de rastos. Os teus olhos nasceram para olhar os astros se te apetece dizer não grita comigo: não. É possível viver de outro modo. É possível transformares em arma a tua mão. É possível o amor. É possível o pão. É possível viver de pé. Não te deixes murchar. Não deixes que te domem. É possível viver sem fingir que se vive. É possível ser homem. É possível ser livre livre livre. Manuel Alegre ------------------------------------------------------ AUSÊNCIA Num deserto sem água Numa noite sem lua Num país sem nome Ou numa terra nua Por maior que seja o desespero Nenhuma ausência é mais funda do que a tua. Sophia de Mello Breyner Andresen ------------------------------------------------------ Desejo Amante Elmano, de teus mimos anelante, Elmano em te admirar, meu bem, não erra; Incomparáveis dons tua alma encerra, Ornam mil perfeições o teu semblante: Granjeias sem vontade a cada instante Claros triunfos na amorosa guerra: Tesouro que do Céu vieste à Terra, Não precisas dos olhos de um amante. Oh!, se eu pudesse, Amor, oh!, se eu pudesse Cumprir meu gosto! Se em altar sublime Os incensos de Jove a Lília desse! Folgara o coração quanto se oprime; E a Razão, que os excessos aborrece, Notando a causa, revelara o crime. Bocage ------------------------------------------------------ No mundo quis o Tempo que se achasse No mundo quis o Tempo que se achasse O bem que por acerto ou sorte vinha; E, por exprimentar que dita tinha, Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse. Mas por que meu destino me mostrasse Que nem ter esperanças me convinha, Nunca nesta tão longa vida minha Cousa me deixou ver que desejasse. Mudando andei costume, terra e estado, Por ver se se mudava a sorte dura; A vida pus nas mãos de um leve lenho. Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado, Já sei que deste meu buscar ventura Achado tenho já que não a tenho. Luís de Camões ------------------------------------------------------ "PARAÍSO" Deixa ficar comigo a madrugada, para que a luz do Sol me não constranja. Numa taça de sombra estilhaçada, deita sumo de lua e de laranja. Arranja uma pianola, um disco, um posto, onde eu ouça o estertor de uma gaivota... Crepite, em derredor, o mar de Agosto... E o outro cheiro, o teu, à minha volta! Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, à cabeceira a luz do teu joelho, entre os lençóis o lume do teu peito... Podes partir. De nada mais preciso para a minha ilusão do Paraíso. David Mourão-Ferreira ------------------------------------------------------ Pela luz dos olhos teus Quando a luz dos olhos meus E a luz dos olhos teus Resolvem se encontrar Ai que bom que isso é meu Deus Que frio que me dá o encontro desse olhar Mas se a luz dos olhos teus Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar Meu amor, juro por Deus Que a luz dos olhos meus já não pode esperar Quero a luz dos olhos meus Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará Pela luz dos olhos teus Eu acho meu amor que só se pode achar Que a luz dos olhos meus precisa se casar. Vinicius de Moraes ------------------------------------------------------ Falas de civilização... Falas de civilização, e de não dever ser, Ou de não dever ser assim. Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos, Com as coisas humanas postas desta maneira, Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor. Escuto sem te ouvir. Para que te quereria eu ouvir? Ouvindo-te nada ficaria sabendo. Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida A querer inventar a máquina de fazer felicidade! Alberto Caeiro ------------------------------------------------------ D. SEBASTIÃO Rei de Portugal Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? Fernando Pessoa ------------------------------------------------------ Já não me importo Já não me importo Até com o que amo ou creio amar. Sou um navio que chegou a um porto E cujo movimento é ali estar. Nada me resta Do que quis ou achei. Cheguei da festa Como fui para lá ou ainda irei Indiferente A quem sou ou suponho que mal sou, Fito a gente Que me rodeia e sempre rodeou, Com um olhar Que, sem o poder ver, Sei que é sem ar De olhar a valer. E só me não cansa O que a brisa me traz De súbita mudança No que nada me faz. Fernando Pessoa ***************************************************************