++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++ Olá a todos Não podiam os Versos de Segunda deixar de prestar uma vénia sentida à voz de Amália. Aqui fica a edição especial como singela homenagem à voz que corporizou a alma portuguesa, com uma pequena seleção de letras e autores por ela cantados. Abraços Carlos P.S. Estas letras chegaram-me às mãs por intermediário, pelo que não tenho forma de confirmar o seu rigor. Se alguém possuir fontes fidedignas, agradeço que me faça chegar as eventuais correcções. Deixo aqui já os meus agradecimentos. ++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++ "Gostava de morrer de repente. Acho que as pessoas deviam ser como as maçãs, cair da árvore." Amália Rodrigues Não é desgraça ser pobre Não é desgraça ser pobre, não é desgraça ser louca: desgraça é trazer o fado no coração e na boca. Nesta vida desvairada, ser feliz é coisa pouca. Se as loucas não sentem nada, não é desgraça ser louca. Ao nascer trouxe uma estrela; nela o destino traçado. Não foi desgraça trazé-la: desgraça é trazer o fado. Desgraça é andar a gente de tanto cantar, já rouca, e o fado, teimosamente, no coração e na boca. Norberto Araújo --------------------------------------------------------------- Fado português O Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava. Ai, que lindeza tamanha, meu chão, meu monte, meu vale, de folhas, flores, frutas de oiro, vê se vês terras de Espanha, areias de Portugal, olhar ceguinho de choro. Na boca dum marinheiro do frágil barco veleiro, morrendo a canção magoada, diz o pungir dos desejos do lábio a queimar de beijos que beija o ar, e mais nada, que beija o ar, e mais nada. Mãe, adeus. Adeus, Maria. Guarda bem no teu sentido que aqui te faço uma jura: que ou te levo à sacristia, ou foi Deus que foi servido dar-me no mar sepultura. Ora eis que embora outro dia, quando o vento nem bulia e o céu o mar prolongava, à proa de outro veleiro velava outro marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava. José Régio --------------------------------------------------------------- Uma casa portuguesa Numa casa portuguesa fica bem pão e vinho sobre a mesa. Quando à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa co'a gente. Fica bem essa fraqueza, fica bem, que o povo nunca a desmente. A alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar, e ficar contente. Quatro paredes caiadas, um cheirinho a alecrim, um cacho de uvas doiradas, duas rosas num jardim, um São José de azulejo sob um sol de primavera, uma promessa de beijos dois braços à minha espera... É uma casa portuguesa, com certeza! É, com certeza, uma casa portuguesa! No conforto pobrezinho do meu lar, há fartura de carinho. A cortina da janela e o luar, mais o sol que gosta dela... Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar uma existéncia singela... É só amor, pão e vinho e um caldo verde, verdinho a fumegar na tijela. Quatro paredes caiadas, um cheirinho a alecrim, um cacho de uvas doiradas, duas rosas num jardim, um São José de azulejo sob um sol de primavera, uma promessa de beijos dois braços à minha espera... É uma casa portuguesa, com certeza! É, com certeza, uma casa portuguesa! Reinaldo Ferreira --------------------------------------------------------------- Gaivota Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa no desenho que fizesse, nesse céu onde o olhar é uma asa que não voa, esmorece e cai no mar. Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração. Se um português marinheiro, dos sete mares andarilho, fosse quem sabe o primeiro a contar-me o que inventasse, se um olhar de novo brilho no meu olhar se enlaçasse. Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração. Se ao dizer adeus à vida as aves todas do céu, me dessem na despedida o teu olhar derradeiro, esse olhar que era só teu, amor que foste o primeiro. Que perfeito coração morreria no meu peito, meu amor na tua mão, nessa mão onde perfeito bateu o meu coração. Alexandre O'Neill --------------------------------------------------------------- Libertação Fui à praia, e vi nos limos a nossa vida enredada: ó meu amor, se fugimos, ninguém saberá de nada. Na esquina de cada rua, uma sombra nos espreita, e nos olhares se insinua, de repente uma suspeita. Fui ao campo, e vi os ramos decepados e torcidos: ó meu amor, se ficamos, pobres dos nossos sentidos. Hão-de transformar o mar deste amor numa lagoa: e de lodo hão-de a cercar, porque o mundo não perdoa. Em tudo vejo fronteiras, fronteiras ao nosso amor. Longe daqui, onde queiras, a vida será maior. Nem as esp'ranças do céu me conseguem demover Este amor é teu e meu: só na terra o queremos ter. David Mourão-Ferreira --------------------------------------------------------------- Meu amor, meu amor Meu amor meu amor meu corpo em movimento minha voz à procura do seu próprio lamento. Meu limão de amargura meu punhal a escrever nós parámos o tempo não sabemos morrer e nascemos nascemos do nosso entristecer. Meu amor meu amor meu nó e sofrimento minha mó de ternura minha nau de tormento este mar não tem cura este céu não tem ar nós parámos o vento não sabemos nadar e morremos morremos devagar devagar. José Carlos Ary dos Santos --------------------------------------------------------------- Povo que lavas no rio Povo que lavas no rio E talhas com o teu machado As tábuas do meu caixão Pode haver quem te defenda Quem compre o teu chão sagrado Mas a tua vida não. Fui ter à mesa redonda Beber em malga que esconda Um beijo de mão em mão Era o vinho que me deste A água pura em fruto agreste Mas a tua vida não Aromas de urze e de lama Dormi com eles na cama Tive a mesma condição Povo, povo, eu te pertenço Deste-me alturas de incenso Mas a tua vida não Povo que lavas no rio E talhas com o teu machado As tábuas do meu caixão Pode haver quem te defenda Quem compre o teu chão sagrado Mas a tua vida não Pedro Homem de Mello --------------------------------------------------------------- Medo Quem dorme à noite comigo? É meu segredo, é meu segredo! Mas se insistirem lhes digo. O medo mora comigo, Mas só o medo, mas só o medo! E cedo, porque me embala Num vaivém de solidão, É com silêncio que fala, Com voz de móvel que estala E nos perturba a razão. Que farei quando, deitado, Fitando o espaço vazio, Grita no espaço fitado Que está dormindo a meu lado, Lázaro e frio? Gritar? Quem pode salvar-me Do que está dentro de mim? Gostava até de matar-me. Mas eu sei que ele há-de esperar-me Ao pé da ponte do fim. Reinaldo Ferreira --------------------------------------------------------------- Estranha forma de vida Foi por vontade de Deus que eu vivo nesta ansiedade. Que todos os ais são meus, Que é toda a minha saudade. Foi por vontade de Deus. Que estranha forma de vida tem este meu coração: vive de forma perdida; Quem lhe daria o condão? Que estranha forma de vida. Coração independente, coração que não comando: vive perdido entre a gente, teimosamente sangrando, coração independente. Eu não te acompanho mais: para, deixa de bater. Se não sabes onde vais, porque teimas em correr, eu não te acompanho mais. Amália Rodrigues