"Poema da malta das naus" Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do Sol. Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo. pelote de vagabundo, rebotalho de gibão. Dormi no dorso das vagas, pasmei na orla das prais arreneguei, roguei pragas, mordi peloiros e zagaias. Chamusquei o pêlo hirsuto, tive o corpo em chagas vivas, estalaram-me a gengivas, apodreci de escorbuto. Com a mão esquerda benzi-me, com a direita esganei. Mil vezes no chão, bati-me, outras mil me levantei. Meu riso de dentes podres ecoou nas sete partidas. Fundei cidades e vidas, rompi as arcas e os odres. Tremi no escuro da selva, alambique de suores. Estendi na areia e na relva mulheres de todas as cores. Moldei as chaves do mundo a que outros chamaram seu, mas quem mergulhou no fundo do sonho, esse, fui eu. O meu sabor é diferente. Provo-me e saibo-me a sal. Não se nasce impunemente nas praias de Portugal. António Gedeão in "Teatro do Mundo", 1958